Fazei isto em memória de mim(1Cor 11,25)

Fazei isto em memória de mim(1Cor 11,25)

Luís Oliveira Freitas

(Professor do IESMA, doutorando em Teologia, PUC-Rio)

Durante o mês de agosto do corrente ano, às quartas-feiras, tivemos o minicurso “Eucaristia, memorial do mistério pascal”, cujo mediador foi Felipe Magalhães Francisco, mestre em Teologia pela Faje e professor da PUC Minas. Foram quatro encontros enriquecedores que trouxeram luzes para o debate acerca da celebração eucarística como também para a prática litúrgica nas nossas comunidades.

Antes de falar propriamente da Eucaristia como memorial, foram apresentados alguns aspectos históricos dessa celebração, cujos fundamentos estão na prática de Jesus com seus discípulos e nos escritos neotestamentários. Os primeiros cristãos compreendiam a Eucaristia como fração do pão, realizada ao fim de um jantar festivo nas casas para celebrar o memorial de Jesus. Aos poucos, a Eucaristia se diferencia da ceia judaica, sendo no primeiro momento a oração de ação de graças feita sobre o pão e o vinho e posteriormente o pão e o vinho eucaristianizado. A partir do século IV, o cristianismo pode expressar publicamente sua fé e com isso, surgem as basílicas como locais de culto cristão e a Eucaristia ganha novos jeitos de ser concebida e celebrada a ponto de, por volta do século VIII, já esteja com um rito bem complexo distanciado da vivência cotidiana.

No segundo milênio, temos uma liturgia reduzida aos livros litúrgicos dando-se ênfase às rubricas. Neste período, a adoração ao Santíssimo Sacramento é bastante incentivada da qual nasce a festa de Corpus Christi com muita pompa. No século XVI, houve uma uniformização litúrgica pelo Concílio de Trento, mas não conseguiu promover a participação dos fiéis que continuaram a fazer suas práticas devocionais durante a missa. Somente em meados do século XIX, surge o movimento litúrgico cujo objetivo era favorecer a participação do povo na liturgia. Pio XII já introduz tímidas renovações litúrgicas que foram aprofundadas no Concílio Vaticano II, o qual propôs profunda reforma da liturgia valorizando-a nos sentidos teológico e espiritual.

A reforma litúrgica do Vaticano II se deu pela Constituição Sacrosanctum Concilium (SC), que fundamenta teologicamente a liturgia a fim de ser bem celebrada pelos fiéis. O documento destaca alguns elementos como: a) a liturgia é a celebração histórica da salvação, cujo significado é a ação de Deus em Jesus Cristo em favor de nossa salvação, (SC 5); b) a obra de salvação em Cristo é continuada na Igreja por meio da liturgia (n. 6); c) a liturgia é toda sacramental, pois pelos sinais sensíveis, podemos fazer a experiência da graça de Deus; é sacramental porque é realizada pelo próprio Cristo que nos comunica sua graça; é o exercício da função sacerdotal do Cristo total, cabeça e membros (n. 7); d) a liturgia terrestre constitui o rosto da Igreja, uma antecipação da liturgia celeste (n. 8); e) a liturgia é o cume e a fonte da vida da Igreja (n. 10).

O documento expressa a necessidade da participação dos fiéis neste mistério a fim de que não se sintam estranhos ou espectadores, mas participantes conscientes piedosos e ativos; aprendam a oferecer pelas mãos do sacerdote o sacrifício perfeito. A palavra ‘participação’, como substantivo ou forma verbal, aparece mais de 40 vezes ao longo deste documento conciliar. Há grande destaque à assembleia, tanto que logo no início do missal de Paulo VI aparece a rubrica: “estando o povo reunido, dá-se início à celebração”, diferente do missal de Pio V que afirmava: “estando o sacerdote paramentado, dá-se início à missa”.

Todavia, em nossos dias, observa-se ainda uma grande dificuldade em fazer da celebração eucarística o lugar do memorial de Cristo em que todos participem ativamente. De certa forma, isso é consequência do pensamento da modernidade que trouxe a ciência e as novas tecnologias. Promoveu a secularização e, ao mesmo tempo, incentivou o pluralismo religioso e cultural. A religiosidade contemporânea se apresenta de maneira fluida, com muitas influências do mercado, favorecendo o trânsito religioso e a bricolagem.

Essa nova maneira de viver a religião trouxe sérias consequências à liturgia contemporânea. Muitos segmentos católicos acabam pondo muita ênfase na adoração ao Santíssimo, nas procissões do Santíssimo Sacramento, missa de cura e libertação, shows missas e outros, ofuscando o sentido próprio da liturgia. Há até o risco de elementos da celebração eucarística serem deslocados do todo, perdendo assim seu sentido.

Há necessidade de redescobrir o memorial da Páscoa de Cristo, por meio de uma catequese que nos ajude a celebrar bem, conhecer de fato o rito que celebramos. Precisamos redescobrir a Eucaristia como memorial da morte e ressurreição de Jesus, conforme as fontes bíblicas. Para isto, vale perceber que a última ceia de Jesus com seus discípulos ocorreu no contexto da ceia pascal judaica, cujos indícios estão nos evangelhos sinóticos. Na tradição judaica, a reconciliação com Deus se dá por meio do sangue, que na Bíblia, é o símbolo da vida. O sacrifício é feito pela doação da vida representado pelo sangue, pois sem o derramamento do sangue não há o perdão (Ex 24,8; Hb 9,22).

Na economia salvífica do Antigo Testamento, o ponto fundante é a saída do Egito com dois momentos fortes intimamente ligados: a ceia antes da saída e a passagem do mar Vermelho. A ceia é o elemento comunitário, com vários alimentos entre os quais o cordeiro, cujo sangue deveria aspergir o batente das portas, todos comem de pé prontos para a partida. A ceia é um sinal de um futuro imediato, prefiguração única (a libertação do Egito na passagem do mar Vermelho); mas também de um futuro longínquo, uma prefiguração litúrgica (celebração anual da Páscoa judaica), como um memorial da libertação.

Na economia salvífica do Novo Testamento, o evento fundante é a morte e ressurreição de Jesus. Nesse contexto, a ceia é o sinal profético que apresenta dupla dimensão: futuro imediato com prefiguração única (a morte e ressureição de Jesus), e de um futuro longínquo, prefiguração litúrgica (celebração dominical cotidiana da Eucaristia). Ritualizar a memória é tornar presente o evento fundador, celebrar na nossa vida hoje a salvação de Deus. Nossa celebração eucarística é a atualização do evento fundador da fé cristã, morte e ressurreição do Senhor, é a celebração do mistério pascal de Jesus.

É preciso redescobrir a Eucaristia como memorial da morte e ressurreição de Jesus. Para isto, vale reconhecer que o sentido do sacrifício de Cristo não está limitado ao sofrimento em si, mas a doação de sua vida em nosso favor. Assim, celebrar a Eucaristia é participar da vida de Jesus, enquanto esperamos sua vinda gloriosa.

A Eucaristia é um banquete festivo, pois nela Jesus se oferece por inteiro pela salvação do mundo. Por meio dela, podemos participar de toda a vida de Jesus na nossa vida. Mas para chegarmos à mesa da comunhão, temos que antes passar pela mesa da Palavra como os discípulos de Emaús. É no caminho contínuo da Palavra que os corações ardem e fazem abrir os olhos na mesa eucarística.

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